A redução de áreas protegidas urbanas é uma ameaça às nossas cidades
As cientistas Ima Vieira (Museu Paraense Emílio Goeldi) e Mercedes Bustamante (UnB) escrevem sobre a ameaça às cidades brasileiras e à qualidade de vida urbana representada pelo PL 2510/2019, aprovado nesta quarta-feira, 08, pela Câmara dos Deputados.
Em uma sociedade cada vez mais urbana, o desenvolvimento de cidades sustentáveis é essencial para a garantia da qualidade de vida das pessoas. Segundo a ONU, atualmente 55% da população mundial vivem em áreas urbanas e a expectativa é de que aumente para 70% até 2050. No Brasil, onde a urbanização se consolida a partir da década de 1950, cerca de 84% da população é urbana. Caracterizadas por processos de ocupação desordenada, nossas áreas urbanas enfrentam vários riscos associados à degradação ambiental, com impactos para a segurança e qualidade de vida de seus habitantes.
A legislação ambiental reconhece a essencialidade da preservação de áreas naturais nas cidades. As Áreas de Preservação Permanente (APPs) urbanas estão disciplinadas e protegidas pela Lei Federal nº 12.651/12 (Lei de Proteção da Vegetação Nativa) e sua delimitação deve seguir, com o mesmo rigor, os critérios estabelecidos para as áreas rurais. A ciência já demonstrou que a conservação da vegetação de APP em áreas urbanas favorece a mitigação dos efeitos desastrosos dos eventos extremos de chuvas em áreas de encosta e de várzeas, pois previnem deslizamentos e servem de anteparo natural às enchentes, pela maior permeabilidade do solo, e portanto, salvam vidas. Além disso, melhoram o clima dos centros urbanos, pela diminuição da temperatura do ar e das superfícies e aumento da umidade atmosférica; colaboram na preservação da biodiversidade; auxiliam na proteção e manutenção da quantidade e qualidade dos recursos hídricos e melhoram muitos indicadores de saúde da população. Assim, as APPs deveriam ser alvos de restrições acentuadas de uso e priorizadas como áreas de reservas de biodiversidade, de estocagem de águas e de prevenção de desastres. Por isso, a conservação e a reabilitação funcional das vegetações de APP urbanas devem ser consideradas prioritárias para o bem estar e proteção da população.
As funções das APPs estabelecidas por lei tornam-se ainda mais relevantes diante das conclusões do mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em 9 de agosto, e que destaca os impactos da mudança do clima em áreas urbanas. Os centros urbanos e as cidades são mais quentes do que as áreas rurais vizinhas devido ao que é conhecido como o efeito ilha de calor urbana. Este efeito resulta de vários fatores, como a redução da ventilação e do aprisionamento do calor devido à proximidade de edifícios altos, o calor gerado diretamente das atividades humanas, as propriedades de absorção de calor do concreto e de outros materiais, e da quantidade limitada de vegetação. Diante das projeções de aumento da temperatura global, a urbanização futura ampliará o aumento de temperatura do ar nas cidades, independentemente das características do clima regional. Assim, em comparação com os dias atuais, esperam-se fortes implicações da combinação do desenvolvimento urbano futuro e ocorrência mais frequente de eventos climáticos extremos, aumentando o estresse térmico nas cidades.
Enquanto a população urbana cresce e a mudança climática se intensifica, aumentam também os efeitos da urbanização sobre a vegetação, os recursos hídricos e os rios. No Brasil, a ocupação de várzeas e planícies de inundação natural dos cursos de água e de áreas de encostas tem sido uma das principais causas de desastres em função de eventos extremos de precipitação, ocasionando, anualmente, perdas de vidas humanas e prejuízos econômicos. Áreas urbanas, devido à alta densidade populacional e infraestrutura são especialmente vulneráveis a tais desastres.
Em suma, as APPs em áreas urbanas possuem papel fundamental para mitigar o estresse térmico nas cidades e contribuem para a redução do risco de enchentes, que também devem se tornar mais frequentes com as mudanças climáticas.
A despeito das robustas evidências apontando a importância das áreas de preservação permanentes urbanas, a Cãmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira, 08, o PL 2510/2019, de autoria do Dep. Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC), que transfere aos municípios a competência para dispor sobre APPs urbanas e não impõe limites mínimos de preservação de vegetação nas faixas marginais de quaisquer cursos de água naturais. Além disso, não impõe limite de tempo para a observância das regras da Lei de Proteção da Vegetação Nativa, permitindo novos desmatamentos em APPs urbanas, observado apenas os limites impostos pelos municípios, que pode ser limite zero. O projeto vai à sanção presidencial.
A mitigação e a adaptação às mudanças climáticas se somam aos demais benefícios das APPs urbanas que guardam uma importância vital para a manutenção da qualidade e integridade do meio ambiente urbano, com comprovados reflexos na saúde da população. Em um país majoritariamente urbano e com taxas crescentes de urbanização, o PL trucida a legislação sobre APPs urbanas e desconsidera nossa dependência de suas funções ecológicas, aumenta consideravelmente nossa vulnerabilidade aos profundos impactos da degradação ambiental e vai na contramão dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), em particular, o ODS 11 que preconiza tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
A sociedade espera que nossos representantes no Congresso Nacional atuem com a responsabilidade e a seriedade que a matéria merece.
Foto: Wilfredor/Wikipédia