Ataques ao sistema de ciência e tecnologia: governo de São Paulo dá com uma mão e tira com a outra
Novo projeto de lei do governador João Doria compromete profundamente o ensino, a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico e a inovação no Estado de São Paulo, com reflexos negativos no Brasil e no mundo.
A ciência e as universidades estão sob ataque no Estado de São Paulo. Dois Projetos de Lei (PL), pretensamente justificados pela crise tributária gerada pela pandemia da COVID-19, representam uma ameaça devastadora à produção de conhecimento científico e tecnológico no estado de São Paulo, comprometendo a própria capacidade do estado de responder à pandemia e encontrar alternativas para a retomada econômica. Esses PLs não são soluções; pelo contrário, criam novos problemas com prejuízo para o desenvolvimento econômico do estado.
O PL 529/2020 propunha, entre outras mudanças, a transferência do superávit financeiro das autarquias e das fundações, ao final de cada ano, à Conta Única do Tesouro Estadual. Para as universidades públicas estaduais (USP, UNICAMP e UNESP) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), esse projeto comprometeria a capacidade de planejamento financeiro e o investimento em pesquisa. Na FAPESP, o superávit corresponde na realidade aos recursos de projetos já aprovados, para os quais a fundação paulista mantém os recursos aplicados e os libera à medida que são demandados pelos pesquisadores. Felizmente, dada a grande resistência da Assembleia Legislativa e da opinião pública, o governo do estado retirou essas instituições do PL 529/2020, mas não as livrou de outra ameaça.
O segundo projeto, PL 627/2020, propõe a desvinculação das receitas dos estados e dos municípios na previsão orçamentária do Estado para 2021. Esse projeto permite reduzir em até 30% as receitas vinculadas em legislações anteriores. A FAPESP e as universidades públicas paulistas, que têm suas receitas vinculadas ao orçamento do estado, terão, dessa forma, um corte de 30% nos seus repasses. Como essas instituições não estão nominalmente citadas no PL 627, o governo aposta que ele não terá grande resistência da sociedade pois não será percebido como um ataque à pesquisa e ao ensino público superior. Na verdade, isso impactará o funcionamento e a capacidade de realização e de fomento de pesquisas, com risco real de suspensão de projetos e bolsas de estudo em andamento.
Os impactos não se restringem ao Estado de São Paulo. Segundo o relatório “Pesquisa no Brasil”, elaborado em 2017 para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), o Estado de São Paulo é responsável por 33% da produção científica brasileira. USP, UNICAMP e UNESP são responsáveis por 41% da produção científica entre as 20 universidades que mais produzem ciência no país. A FAPESP tem papel central nessa produção, pois financia 35% das pesquisas realizadas na USP, segundo levantamento feito na universidade, em 2018.
A existência de uma política científica robusta e contínua e o esforço de instituições sólidas e independentes de São Paulo contribuíram para que o Brasil se tornasse um dos países que mais cresce em produção científica no mundo. A ciência produzida pelo Estado de São Paulo tem avançado em diversas áreas do conhecimento, como saúde, ciências políticas e sociais, biodiversidade e economia. Os benefícios para a população são perceptíveis desde o enfrentamento da pandemia de Covid-19, o uso racional de recursos hídricos e minerais, o combate às mudanças climáticas e à poluição, até o desenvolvimento de novas empresas e tecnologias em prol da sociedade.
O PL 627, se aprovado, compromete profundamente o ensino, a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico e a inovação no Estado de São Paulo, com reflexos negativos no Brasil e no mundo, com perdas econômicas e sociais incalculáveis e duradouras. Em nenhum cenário racional estas perdas são compensadas pela economia de curto prazo e altamente questionável projetada pelo governo estadual, que novamente confunde investimento em ciência e tecnologia com gasto. Perde a ciência, perde a sociedade, perdem os contribuintes do estado de São Paulo e, consequentemente, o país como um todo.
O PL 627 compromete a segurança e a visão de futuro resultantes do conhecimento científico para o desenvolvimento econômico ao ameaçar a autonomia de planejamento financeiro das universidades públicas paulistas e da FAPESP e desestruturar e degradar sua atuação. Confiamos que a opinião pública e os deputados se posicionem mais uma vez a favor do conhecimento, da formação de profissionais competentes e em prol de um desenvolvimento baseado em ciência e tecnologia. O indecoroso e sorrateiro PL 627 é contra tudo isso e contra toda a sociedade.
Foto: Marcos Santos / USP Imagens