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Boa para o peixe e para o pescador

Quem sairia ganhando com o cancelamento da lista de animais aquáticos ameaçados?

Não existe critério técnico que fundamente o pedido do Ministério da Agricultura para suspender a lista de peixes e invertebrados aquáticos ameaçados de extinção. Pelo contrário, o acúmulo de evidência colhida por pesquisas mostra que a exploração dessas espécies pode incorrer no esgotamento de estoques de pescado, afetando o modo de vida de comunidades tradicionais ribeirinhas e caiçaras além da produtividade da própria indústria pesqueira no médio e longo prazo.

A “Lista Nacional das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção – Peixes e Invertebrados Aquáticos”, publicada em 2014 sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente, adota critérios validados internacionalmente para selecionar espécies prioritárias para proteção. Já o pedido de suspensão temporária e revisão da lista foi articulado de forma pouco transparente pela Secretaria de Aquicultura e Pesca – a SAP, equivalente ao antigo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), com atribuições agora incorporadas pelo Ministério da Agricultura – e não acompanha documento técnico relevante. Tal medida, além de exercer impacto negativo sobre a biodiversidade, não interessa à sustentabilidade da indústria pesqueira, sobretudo no Brasil, onde tem relevância econômica e é um dos pilares da segurança alimentar.

Parte da justificativa da SAP para pedir a anulação da lista se baseia no fato de esta ter sido elaborada com metodologia validada pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN). O texto do pedido de suspensão, revelado pela imprensa, sugere que o Brasil “deve se orientar pelos seus próprios critérios para definição e adoção das políticas públicas que afetarão a fauna e a todos os brasileiros e não por critérios de ONGs internacionais”.

Tal afirmação revela desconhecimento sobre o que é a IUCN e sobre a sua importância para a articulação global de conservação da biodiversidade.

Critérios internacionais
Por muitos anos o Brasil tem construído com sucesso sua política de conservação da biodiversidade, a qual inclui a elaboração continuada e periódica de listas de espécies ameaçadas, sempre com base em critérios reconhecidos pela comunidade acadêmica internacional. A IUCN é o ente que consolida estas orientações técnicas. Dentre as 1.300 entidades integrantes da União estão instituições de conservação, centros acadêmicos e de pesquisas, ONGs que representam populações tradicionais ou comunidades locais e ONGs conservacionistas. Além destes, são membros da IUCN governos nacionais e suas agências ambientais respectivas. Trata-se, portanto, de um organismo multilateral de grande relevância e representatividade.

O Brasil, sendo o país mais biodiverso do mundo, tem presença relevante na IUCN, com especialistas de várias instituições governamentais e não governamentais. Esses técnicos e pesquisadores, e outros especialmente convidados, são periodicamente consultados para uma avaliação do status das espécies nativas, e para organizar as listas daquelas que se encontram de alguma forma ameaçadas.

Reagindo ao noticiário, a SAP emitiu nota afirmando que, em vez de usar critérios da IUCN, deveriam ser usados critérios de estatística de desembarque, a produtividade da indústria. Mas os critérios da IUCN admitem o uso destas estatísticas, sempre que disponíveis. E o Brasil já não produz estatísticas oficiais de desembarque costeiro nacional desde 2008 (quando o sistema foi desmantelado pelo próprio MPA, na época). Instituições como o Instituto de Pesca de São Paulo ou o Instituto Mamirauá, por exemplo, ainda mantém estatísticas de desembarque em suas regiões de atuação, mas elas são exceções. Estes dados também foram usados nas avaliações, seguindo os critérios da IUCN.

Atuação predatória
A primeira versão da lista de peixes e invertebrados aquáticos ameaçados, concluída em 2014, contou com a participação de mais de 300 especialistas brasileiros e estrangeiros. Foi avaliado o estado das populações de todas as espécies de peixes conhecidas que ocorrem no Brasil, sendo que para 475 delas foi constatado algum grau de ameaça, sem incluir aquelas para as quais já se constatou extinção. Esse número não inclui aquelas para as quais se constatou extinção. Dentre as ameaçadas, 30 são espécies de importância comercial para a indústria pesqueira. Para as espécies selecionadas, proíbe-se captura, transporte, armazenamento, guarda, manejo, beneficiamento e comercialização.

A elaboração da lista de espécies ameaçadas (não só as aquáticas, mas também da maior parte dos grupos taxonômicos de vertebrados brasileiros) demanda grande responsabilidade e implica um esforço de trabalho monumental, que é confiado aos nossos melhores especialistas. Diante de um processo criterioso para apontar quais espécies devem ter condições especiais de proteção, o que a SAP apresenta de dados técnicos para questioná-lo? O pouco que se sabe a respeito da motivação para tal, revelado pela imprensa, e não pelo governo, é que um segmento da indústria pesqueira com histórico de atuação predatória exerce influência sobre a SAP.

Antes disso, em 2015, críticas à lista já haviam precipitado ações conciliatórias, como a criação de um grupo de trabalho integrado entre os ministérios da Pesca e do Meio Ambiente. Tal grupo endossou a constatação da lista, inclusive reconhecendo que esta usava critérios conservadores. O grupo foi posteriormente desmembrado. Foram então definidas espécies prioritárias para estudos, monitoramento e recuperação de estoques. Portanto, naquele ano ainda havia um diálogo efetivo e produtivo entre os órgãos envolvidos na questão.

Transparência
Para reforçar a transparência e robustez da lista, em 2016, uma portaria ministerial (MMA 162/2016) deu início a um processo para colocar a Comissão Nacional da Biodiversidade como intermediária em sua elaboração. Esta divulgaria os resultados das avaliações e colheria questionamentos e discussão antes de as restrições entrarem em vigor. A atual gestão do MMA não se manifestou ainda sobre a implementação desse processo.

Em uma audiência pública na Câmara dos Deputados em 25 de junho, Elielma Borcem, coordenadora de Ordenamento e Desenvolvimento da Pesca Marinha da SAP, afirmou que a publicação da lista de espécies ameaçadas fora feita de forma “unilateral” pelo MMA. Para a SAP, a lista deveria permanecer secreta e embargada até que o órgão de pesca também autorizasse sua promulgação. Não seria um procedimento comum, uma vez que o estabelecimento de objetivos de conservação é atribuição constitucional do Ministério do Meio Ambiente, que tem o arcabouço técnico para tal. Evidentemente, é importante e saudável que haja diálogo entre os ministérios, mas sem que um se interponha nos afazeres do outro. A transparência na divulgação da lista, além do mais, é essencial para que esse debate envolva a sociedade civil, também parte interessada na preservação dos estoques de peixes, bem como a própria indústria pesqueira.

Colocando de modo simples e direto, o objetivo da lista de peixes ameaçados não é prejudicar o setor pesqueiro, é proteger os estoques e garantir que, no futuro, existam peixes para serem pescados por essa indústria, que gera emprego, renda e desenvolvimento para o país. A revogação destas listas, ainda que em caráter temporário, põe em risco a estratégia nacional de proteção às espécies, e ameaça consumidores, além do futuro da própria pesca.

Reafirmar a importância das listas de espécies ameaçadas, de qualquer forma, não significa que elas não sejam ferramentas passíveis de revisão. À medida que novas informações se tornam disponíveis, novas versões são oferecidas para a formulação de novas medidas da política de controle das atividades de exploração das espécies nativas. Mas esse processo de revisão – que é até mesmo exigido pela IUCN – precisa ser tão criterioso e transparente quanto foi o de elaboração da lista em 2014.

Este artigo foi originalmente publicado pelo site Direto da Ciência
Coalizão Ciência e Sociedade

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A Coalizão Ciência e Sociedade é formada por cientistas de instituições de ensino e pesquisa de todas as regiões brasileiras. Você pode conferir todos aqui

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