Ciência, educação e o futuro da sociedade brasileira
No primeiro artigo da série “Avaliando 2020 e preparando 2021”, sobre o estado da educação, saúde, meio ambiente, povos tradicionais e sistemas costeiros e marinhos no Brasil atual, a Coalizão Ciência e Sociedade defende que é preciso discutir qual projeto educacional necessitamos para reduzir iniquidades históricas e fazer frente a novos desafios globais.
A relação positiva entre nível educacional e desenvolvimento socioeconômico dos países emerge pelo menos de duas formas. Em primeiro lugar, o investimento expressivo e continuado em educação resulta em maior atividade científica, garantindo a soberania nacional por meio da independência tecnológica em diferentes áreas do conhecimento. Em segundo lugar, sociedades com maior conscientização social e ambiental e maior capacidade crítica são capazes de tomar decisões mais acertadas em relação à escolha de prioridades para seu próprio futuro.
Embora os investimentos em educação tenham variado nos últimos 50 anos, é possível dizer, de modo geral, que houve melhoria significativa nas condições educacionais do Brasil ao longo do tempo, em todos os níveis, conforme demonstram diversos indicadores educacionais e da atividade científica comparando nossos resultados com os de outros países.
Em geral, os programas educacionais nos diferentes níveis se mantiveram ao longo de diferentes gestões, podendo ser, nesse sentido, caracterizados como políticas de Estado e não de governo, pelo menos em princípio. Como consequência, observamos um enorme crescimento da educação superior pública e na formação de professores, da ciência e da pesquisa, associado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), grandes investimentos especialmente na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e na Coordenação para Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), além da consolidação das fundações estaduais de apoio à pesquisa (FAPs).
Formação em ascensão
A formação de mestres e doutores cresceu vertiginosamente, com um aumento da ordem de 5 a 7 vezes entre 1997 e 2017, embora, segundo uma avaliação recente do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), o número de doutores por milhão de habitantes ainda esteja em um patamar consideravelmente inferior ao de países mais desenvolvidos em ciência e tecnologia (C&T), como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. Lentamente, aparecem também interações científicas entre os setores público e privado, especialmente em áreas mais tecnológicas.
Isso tudo se expressou na ampliação expressiva dos programas de pós-graduação e na consequente maior inserção internacional da ciência brasileira. Entretanto, mesmo com esses avanços ainda há sérios problemas a serem resolvidos em termos de financiamento e democratização mais efetiva do ensino nos diferentes níveis e valorização da carreira docente, especialmente na educação básica.
Considerando-se a relação entre educação e desenvolvimento social e científico-tecnológico, deve-se destacar que, segundo dados do período entre 2011-2016 da Clarivate Analytics, cerca de 95% da pesquisa científica brasileira foi desenvolvida pelas universidades públicas, fortemente associada aos programas de pós-graduação, colocando o país aproximadamente na 13ª posição em um ranking global de produção científica.
Redução de investimentos
Com a crise econômica atual, houve contínua redução de investimentos no setor, com perda significativa de recursos para pesquisas no FNDCT, Capes e CNPq, de cerca de 68% em relação ao orçamento máximo de 2015, segundo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A maior parte das FAPs também enfrenta severa redução de recursos.
A redução do financiamento para educação e C&T hoje resulta da crise econômica em maior escala que atingiu o país a partir de 2015, mas reflete também o ambiente político que vem se instalando gradualmente no Brasil desde 2019. De fato, a situação mudou drasticamente desde então, tanto pela intensificação dos cortes de recursos financeiros destinados à educação nos mais diferentes níveis quanto por uma politização de questões ligadas à educação e à ciência.
Desde o início do atual governo federal a gestão do ensino superior caracterizou-se por ataques às universidades (especialmente as públicas) e sua autonomia constitucional, com graves intervenções no processo de escolha dos reitores em várias instituições, agora minimizadas por decisões do Supremo Tribunal Federal.
Agravamento de problemas
Uma análise realizada pelo GPPI (Global Policy Public Institute), e publicada em setembro de 2020, mostra uma redução preocupante na liberdade acadêmica no Brasil. Há tentativas claras de desviar os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que distribui recursos para educação básica de estados e municípios, para outras ações não diretamente relacionadas com a educação pública. Somam-se a esses cortes tentativas de cerceamento à manifestação de docentes a partir de informações distorcidas ou equivocadas sobre doutrinação ideológica e o ensino de temas como identidade de gênero e educação sexual nas escolas, com muitas discussões sobre o projeto “escola sem partido”.
A pandemia da Covid-19 a partir do início de 2020 agravou muitos dos problemas já existentes. Com a suspensão das aulas presenciais, ficou evidente a falta de condições da maior parte das instituições de ensino público, mesmo universidades, de responder à crise e se adequar às atividades remotas. Milhões de estudantes ficaram desamparados a maior parte do ano, sem ações ou intervenções coordenadas por parte do MEC junto às universidades, aos estados e municípios. A pandemia desnudou, de forma cruel, a desigualdade no acesso à internet e a baixa inclusão digital, sem mencionar que muitos estudantes não têm condições adequadas de estudo em um ambiente doméstico. O fechamento das escolas afetou, em especial, as mulheres trabalhadoras e a segurança alimentar de milhares de crianças e jovens.
A exposição de problemas sociais e econômicos na pandemia foi acompanhada pelo avanço do negacionismo e da pseudociência no Brasil, amparado pela propagação de notícias falsas. Há que se perguntar se um governo que se apoia na disseminação de notícias falsas para encobrir ações desastrosas e sua inação, por exemplo, em questões de saúde e meio ambiente, poderia ter um plano consistente para a educação. A interrupção das políticas de Estado, bem como o desestímulo à formação acadêmica de jovens tem graves consequências de longo prazo para nossa sociedade e principalmente para a economia brasileira.
Lições de um ano difícil
Sem dúvida, 2020 foi um ano difícil para a ciência e a educação (em todos os seus níveis), mas trouxe também algumas lições. Apesar do negacionismo que se alastra nas redes sociais e se manifesta por meio de autoridades governamentais, a sociedade brasileira passou a ter uma visão mais positiva quanto ao reconhecimento da importância da ciência e dos cientistas para a solução adequada dos problemas, segundo o “State of Science Index Survey” da 3M. Isso seria mesmo esperado considerando a resposta dada pela academia para o enfrentamento da pandemia, nas mais diferentes áreas.
A adoção de ensino remoto promoveu o desenvolvimento de estratégias que poderão iniciar transformações maiores e de maior alcance com mudança de foco do ensino para a aprendizagem. Passamos a usar muito rapidamente todo um conjunto de ferramentas de interação remota que permitem conectar pessoas e difundir mais efetivamente o conhecimento.
É preciso discutir qual projeto educacional necessitamos para reduzir iniquidades históricas e fazer frente a novos desafios globais, e esperamos que essa discussão possa desencadear mudanças positivas na sociedade, para que as possibilidades transformadoras de produção do conhecimento e da educação sejam, de fato, reconhecidas como as maneiras mais eficazes de termos uma sociedade mais justa, mais democrática e com um futuro sustentável pela frente.