Com quantos desastres se faz uma consciência ambiental?
Os riscos da liberação do plantio de cana-de-açúcar no Pantanal, na Amazônia e na Bacia do Alto Paraguai
A Coalizão Ciência e Sociedade1, que congrega cientistas de todas as regiões do Brasil, manifesta seu apoio ao posicionamento do Observatório do Pantanal2 sobre os impactos negativos do Decreto Federal 10.084/2019 que revoga o Decreto 6.961/2009, que restringia a expansão das áreas de plantio de cana-de-açúcar na Amazônia, no Pantanal e na Bacia do Alto Paraguai (região do planalto em torno do Pantanal com formações vegetais dos biomas Cerrado e Amazônia), e reforça a necessidade de revisão dessa iniciativa.
A sucessão de desastres ambientais, ao longo de 2019, em diferentes regiões do Brasil e que atingiram rios, ecossistemas terrestres, marinhos e costeiros em meio a um processo de esvaziamento (tanto em termos materiais, como no cumprimento de suas funções) dos órgãos ambientais, gerou enorme repercussão negativa nacional e internacional. Todavia, a consciência de que a degradação ambiental afeta o crescimento econômico e compromete a qualidade de vida da população em vários aspectos parece ainda não ter sido despertada no governo federal.
A revogação do Decreto em questão abre caminho para a expansão da cana-de-açúcar no Pantanal, Amazônia e Bacia do Alto Paraguai e suscita preocupação, tanto pelo aumento do desmatamento diretamente associado a essa atividade, quanto pelo espaço que ela abre ao deslocar outros usos do solo (por exemplo, pastagens). Além disso, com o plantio de cana-de-açúcar há o potencial de contaminação de recursos hídricos seja pela toxicidade do vinhoto (produto resultante da destilação da cana, comumente descartado nos cursos d’água) como pelo uso de fertilizantes e agrotóxicos, mudanças nos fluxos de água, invasões biológicas, gerando perda de biodiversidade. Esse quadro se torna ainda mais dramático, considerando que tanto a Amazônia como o Pantanal e a Bacia do Alto Paraguai já sofrem a pressão da expansão da agricultura intensiva e da degradação, como os grandes incêndios recentes evidenciaram. Recentemente, foi evidenciado o “Arco do desmatamento” do Pantanal, justamente no encontro com a Bacia do Alto Paraguai, demonstrando que a liberação de plantio da cana-de-açúcar pode agravar ainda mais a conversão da vegetação nativa nesta região sensível por abrigar as cabeceiras dos rios que alimentam o delicado regime hídrico do Pantanal.
O Zoneamento Agroecológico da cana-de-açúcar foi fruto de estudos envolvendo não só a aptidão das áreas para cultivo com base no clima e no solo, mas também os potenciais impactos ambientais decorrentes de sua expansão. Hoje, não há novo conhecimento científico ou novos marcos regulatórios que justifiquem a revogação do Decreto 6.961/2009.
Adicionalmente, há sérias considerações sobre questionamentos quanto a sustentabilidade da bioenergia brasileira em mercados e negociações internacionais, caso essa monocultura avance sobre o Pantanal, seu entorno e a Amazônia. Extensas áreas já transformadas e degradadas em outros biomas, podem oferecer com gestão territorial apropriada, a oportunidade de expansão da cadeia da cana-de-açúcar sem os riscos embutidos na revogação da restrição ao cultivo no Pantanal e na Amazônia.
Pesquisas de opinião pública conduzidas ao longo dos últimos anos apontam o desmatamento como a principal preocupação ambiental dos brasileiros. Já é hora dessa preocupação encontrar ressonância na gestão federal.
1 https://www.cienciasociedade.org
2 https://observatoriopantanal.org/2019/11/12/cana-de-acucar-e-ameaca-ao-pantanal/