Nota sobre a medida provisória 867/2018 do Poder Executivo
MERCEDES BUSTAMENTE
IMA VIEIRA
A Coalizão Ciência & Sociedade, que congrega mais de 50 cientistas atuando em todas as regiões do Brasil, manifesta extrema preocupação com os termos e urgência impostos na Medida Provisória (MP) 867/2018, que altera a Lei nº 12.651 de 25 de maio de 2012 (Lei de Proteção da Vegetação Nativa -Código Florestal), para dispor sobre a extensão do prazo de adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Essa MP, após a aprovação de várias emendas, se transformou no Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 9/2019.
Após inúmeras emendas, sem relação com a proposta original, o PLV modifica pontos importantes da Lei 12651/2012vigente, que foi discutida por mais de 10 anos no Congresso Nacional, finalmente aprovada em 2012 e confirmada a sua constitucionalidade em 2018 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Dentre as várias mudanças sugeridas, as mais críticas são as alterações dos artigos 59 e 68 da Lei de Proteção da Vegetação Nativa, que tratam, respectivamente, do Programa de Regularização Ambiental (PRA) e da dispensa de recomposição de Reserva Legal nos casos de supressão da vegetação nativa feita de acordo com a lei em vigor.
Os principais avanços da Lei de Proteção da Vegetação Nativa de 2012 são o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA). Até janeiro de 2019, cerca de 5 milhões de imóveis rurais (totalizando mais de 450 milhões de hectares) foram cadastrados no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural-SICAR. Os estados passaram a regulamentar os PRA logo após a aprovação da lei e pelo menos 17 estados e mais o Distrito Federal já possuem suas normativas de regulamentação. Com o apoio do Fundo Amazônia, por exemplo, já foram investidos mais de 60 milhões de reais para cadastros de 530 mil imóveis rurais em 12 estados, etapa relevante do processo de regularização ambiental da agropecuária que se desenvolve na Amazônia.
A proposta de alteração do artigo 59 exclui o prazo para adesão ao PRA, e estabelece que o proprietário deve aderir ao PRA apenas se este for notificado pelo órgão responsável, e não mais após a inscrição no CAR. Alterar a forma de conduzir o PRA é ignorar todo o esforço e recursos que foram empreendidos nos estados na elaboração das normas de regularização ambiental, podendo levar à paralisação das regulamentações em curso nos estados com normativas já estabelecidas. Além disso, resulta em insegurança jurídica em um processo que exige colaboração e confiança junto ao setor produtivo. O PRA permite, além da solução de passivos ambientais, o acesso a incentivos econômicos, e tem como produto final a regularização e a restauração de áreas degradadas. O PRA, junto com o Termo de Compromisso assinado pelo produtor, é a garantia de que o produtor rural irá cumprir a sua responsabilidade ambiental seguindo as diretrizes da Constituição Federal. A proposta é um enorme retrocesso e um desestímulo a processos de conciliação e colaboração na colaboração territorial do Brasil.
A nova redação do artigo 68 altera a Reserva Legal na Caatinga, Cerrado, Pampa e Pantanal, reduzindo expressivamente a proteção ambiental em biomas onde a conversão de nativa florestal e não florestal já atingiu níveis críticos e com extensas áreas degradadas.Ao invés de considerar a data de 22/07/2008 como marco para definir área rural consolidada, o PL passa a considerar um marco temporal por bioma e propõe que todas as infrações que aconteceram antes destas datas não sejam computáveis para fins de recuperação ambiental. Estimativas de especialistas evidenciam que cerca de 4 a 5 milhões de hectares de Reserva Legal (a metade da demanda atual) deixarão de ser recompostas, compensadas ou regeneradas, em função desta anistia.
As propriedades particulares com vegetação nativa, em seus diferentes estágios de regeneração, vêm ganhando importante relevância econômica e socioambiental no Brasil. A biodiversidade e os ecossistemas naturais em propriedades rurais fornecem uma ampla gama de serviços ecossistêmicos, como polinização, conservação da água, regulação do clima, controle de erosão dos solos, proteção contra incêndios, regulação da infestação de pragas e de doenças, entre outros. Todos esses serviços contribuem para a segurança alimentar, climática, hídrica e energética e, consequentemente, para a qualidade de vida. Devido à sua extensão total e suas condições, a preservação da vegetação natural nas propriedades rurais é especialmente importante, pois abrange aproximadamente 30% da vegetação natural total do Brasil (167 milhões de hectares). Essas áreas são cruciais não apenas para a proteção da biodiversidade, em complementação à rede de áreas públicas protegidas, mas também para o bem-estar da população brasileira, garantindo a função social das propriedades privadas como previsto na Constituição Federal do Brasil.
As emendas inseridas no PLV no.9/2019 comprometem a proteção da vegetação nativa e a implementação da Lei de Proteção da Vegetação Nativa, com impactos negativos sobre a regulamentação dos PRAs, implantação de Cotas de Reserva Ambiental (CRA) e definição de incentivos econômicos para a proteção da vegetação nativa, incluindo pagamentos por serviços ambientais e outros. Qualquer modificação na Lei de Proteção da Vegetação Nativa deve ser baseada em diálogo amplo e transparente com a sociedade, e deve ser alicerçada em dados científicos e análises pormenorizadas sobre os impactos ambientais e gestão dos estados, que já estão em processo de regulamentação da Lei há sete anos.
Adicionalmente, consideramos que a premissa de uma regularização de passivos ambientais em propriedades rurais baseada no apoio e no incentivo, em sobreposição àquela baseada em sanções aos produtores, permite uma mobilização muito mais eficaz para a conquista da conservação ambiental com produção agrícola.
A conscientização de produtores e de mercados consumidores sobre o cumprimento de normas ambientais já avançou muito, mas ainda encontra resistência. A transição para uma economia mais justa e sustentável, com ativos ambientais conservados e produção sustentável só será alcançada se unirmos esforços em torno de uma real implementação da Lei de Proteção da Vegetação Nativa, de maneira que ela possa ser efetiva e eficiente, sem retroceder nos avanços obtidos durante mais de uma década de diálogo com a sociedade
Assim, para proteger a vegetação nativa e garantir uma produção sustentável da agricultura brasileira, solicitamos aos senhores senadores e deputados, que não acatem as emendas à MP 867/2018 ou outras iniciativas parlamentares que desqualifiquem a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, e sim, busquem o aprimoramento e a aplicação da referida Lei.
Sobre as autoras:
MERCEDES BUSTAMANTE é professora titular do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB)
IMA VIEIRA é pesquisadora titular do Museu Parense Emilio Goeldi (MPEG)